quinta-feira, junho 27, 2013

Moldura


Limparam-se os móveis, varreu-se a casa, abriram-se as janelas de par em par, deixando a casa com uma maior frescura no tórrido sol de Agosto. Lavaram-se os cortinados, trocaram-se lençóis e as toalhas da mesa ficaram mais brancas que no dia em que chegaram ali.
Trouxeram perfumes e mãos suaves, suores e mãos rugosas, trabalhos no campo duros e árduos sobre o calor do fim da manhã e do início de tarde. Apertaram-lhe as mãos, beijaram-lhe o rosto, disseram-lhe palavras, fizeram-lhe carinhos. Traziam fatos escuros e boinas, bigodes e rugas, alguns apenas com camisas simples brancas das horas rápidas para conseguir estar ali. Trouxeram-lhe óculos e olheiras.
Os ferros assentaram no chão, junto da jarra de flores de variadas cores que se dispunham na sala, e colocaram a taça, na pequena mesinha do canto, onde estava um homem absorto e melancólico.
E finalmente, trouxeram-no.
A madeira polida de carvalho entrou na sala sobre gemidos e choros, apagados pelo som de um sino que teimava em badalar sobre aquela terrível atmosfera abafada.
Poisaram-no.
As bandeiras posicionaram-se sobre a porta de saída, numa sala apinhada de povo, de gente simples e humilde e de outra gente mais composta. E aqui não havia distinções sobre a dor.
O homem pequeno começou então uma cerimónia prolongada, cheia de significado e simbolismo sobre os olhos da fé de quem acredita em tais palavras. As benções finais e o desejo de pesar trouxeram mais gemidos e choros, palavras e sussurros, águas e açucares, quando os quatro homens de fortes braços puxaram as pregas e transportaram a peça. E tudo se mudou para um clima ainda mais quente, mas menos abafado que o ar irrespirável daquela sala.
A marcha não foi longa, as preces, essas, foram muitas. As lágrimas escorriam e os sons confundiam-se com os sapatos que decalcavam os velhos paralelos da aldeia. Tudo era vão.
Abriram-se as portas do gradeamento, em feitio geométrico e encaminhou-se para o rectângulo castanho escavado na terra. Assentaram-se os paus e por fim o casulo de madeira desceu sobre as cordas.
Ouviu-se de novo a voz do pequeno homem, o grito de alguém e o choro e soluçar dos intervenientes na peça da vida, a vocalização da dor, o mar de quem perde alguém para a terra. Ou para o céu, quem sabe.

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O retrato da moldura sorriu pela última vez antes de se deitar. Estava cansada, exausta, sem qualquer tipo de reacção. Passaram-se duas semanas sobre aquele dia e agora estava verdadeiramente a cair em si.
- Amava-lo?
E a voz ecoou na cabeça dela como que um alerta, uma palavra-chave da resolução, um enigma decifrado, um sentido.
- Sim, muito.
Silêncio.
- E...
- Não, nunca lhe disse.
E a lágrima que teimava em chegar ao canto do olho, rolou sobre a bochecha rosada.
- Não tens de te sentir culpada... Ele sabia.
- Eu sei, mas dói. Embora não haja nada a fazer.
Mais uma vez olhei-a e dei-lhe um abraço.
- Não vale de nada ficar a remoer no que devias ter dito e não disseste. De certo ele sabia, no fundo tudo aquilo que lhe querias dizer.
- Talvez, mas...

E mais uma vez voltei a segurar o choro dela, a menina dos cabelos castanhos.

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