quarta-feira, julho 10, 2013

1.1 - O Perfume


A esplanada da cidade estava mais ou menos composta, com pessoas diferentes de parte a parte, sem novidades por sinal. Tudo estava igual, ora meio vazio ora semi-cheio, na tarde de verão de Julho quente ou talvez escaldante, que salpicava as cadeiras de ferro e plástico da praça.
O cheiro a café misturava-se com os aromas de gelado e até mesmo os perfumes das árvores altas que por ali estavam há anos, obra de qualquer senhor que vendia a sua cara em grandes janelas nas principais avenidas da cidade. Havia um cheiro que por vezes invadia aquela esplanada em certos dias que eu nunca conseguia decifrar. Mas habituei-me a ele, como os pássaros se habituam aos barulhos da cidade.
Olhava agora em volta e por vezes observava alguns comportamentos diferentes na cidade.
Tendencialmente as pessoas do campo, de onde eu era oriundo, eram de poucos afectos, ou melhor, de poucas demonstrações. A cidade era diferente, e por isso pior. As pessoas do campo provavam umas ás outras, davam antes atitudes, entreajuda de uma comunidade impossível de se ver na cidade... E hoje já nada é como antes.
As pessoas entretém-se a beber palavras em mensagens ou a saborear beijos e escutar conversas em vez de os sentirem. Abstractamente, será que ainda alguém sabe o que é sentir um gesto ou escutar uma acção? É a  tal crise de valores, que tanto se fala. Ou melhor... se "tecla".
O fumo os carros da praça misturava-se com o cheiro a cerveja acabada de tirar e de o café a sair na máquina. Os sumos e os gelados davam colorido à meia dúzia de cadeiras dispostas entre as mesas. E de novo apareceu o tal perfume. E pela segunda vez não liguei, porque apenas tinha sido por breve instantes como se estivesse a passar apressado ou atrasado para algum encontro. Talvez fosse um desses corredores que aproveitavam o final do dia para exercitar o seu corpo ou então algum maníaco das bicicletas que viesse a pedalar a toda a velocidade pela ciclovia. Tinha de conhecer o rosto daquele perfume!
A tarde ia caindo sobre o rio e os barcos desaguavam nas margens de onde saiam turistas, muitos e muitos turistas que por ali vinham passear. E o cheiro dos plátanos agora estava um pouco mais forte enviado pela brisa do rio. Tentava só ignorar o odor dos tubos de escape...
Era agora tempo de tirar o bloco de notas. Incrivelmente aquela paisagem da praça e do rio ao entardecer tinham-me dado alguma inspiração (ou talvez o perfume, quem sabe), e decidira esboçar uma ideia de um texto ou de preparar factos e temas para um livro.
"O melhor meio de transporte é uma folha de papel em branco..."
E então comecei a imaginar damas e duquesas, crimes e boas acções, fugas e cheiros, sons e visões, altos voos, caminhadas imensas, voltas ao mundo, sonhos e pesadelos. Infernos e Céus. Alfas e Omegas, milhares de estrelas...
E estava tão distraído nestas conversas comigo mesmo que nem reparei que pairava no ar o perfume e este seguia para dentro do café. Apenas a via de costas e até me parecia familiar!
Deixei então o Robinson Crusoé e o Napoleão em paz e esperei que o perfume saísse, e para meu espanto o rosto do perfume passou pé ante pé pelo balcão, como que uma bailarina a executar o seu número e debruçou-se sobre mim. Afinal já conhecia aquele cabelo.
- Olá. Por aqui?
Conheci-a, mas pouco. Já nos tinhamos cruzado algumas vezes... amigos em comum, etc.
- Sim. Vim espairecer. E tu? Senta-te e bebe qualquer coisa...
- Oh, desculpa. Estou com um pouco de pressa...
Olhei-a e pareceu-me ter ficado mesmo desapontada com o facto de não poder ficar. Sorri e resolvi olhar-lhe nos olhos.
- Não faz mal. Tenho estado a escrever também. E então és tu a dona desse perfume?
Ela abriu um sorriso rasgado.
- Parece que sim.
Ri-me, envergonhado.
- Parece que vamos ter de combinar um café...
Ela olhou-me desconfiada
- Parece-te?
Por fim, olhei a praça mais deserta agora e mais fresca, apenas com a brisa do rio e o bom cheiro dos plátanos, sobre o horizonte: apenas uma restea de sol. Sorri de novo e pisquei o olho enquanto, com um ar já mais confiante dizia:
- Tenho a certeza.
Ela sorriu, pegou na saca que trazia e foi-se embora. Tinha ganho a primeira batalha e o dia, mas a jornada adivinhava-se longa... E perfumada.

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