Era noite cerrada, no último dia de Verão e pouco conseguia dormir.
Aquele Setembro não tinha sido sem dúvida o melhor que já tinha tido, e os maus presságios continuavam a tornar-se cada vez mais evidentes. Chovia nessa noite, estranhamente, uma chuva violenta e um trovejar tempestuoso.
Tinha estado a escrever até altas a horas, investindo o meu pouco sono naquilo que mais gostava e que mais precisava no momento. A rapariga dos cabelos castanhos tinha dormido em casa dos país, embora eu preferisse que ela tivesse ficado por aqui, tinha de respeitar a sua vontade. Talvez se quisesse sentir mais perto deles, já que apenas o pai conheceu durante alguns anos da sua vida...
Há muitas coisas que não compreendia ainda dela, mas que achava que talvez não o pudesse compreender, porque essas coisas lhe diziam respeito ao seu intimo e com o passar do tempo ia acabar por perceber porque fazia ela as coisas dessa maneira.
Bip-bip.
O telemóvel vibrava na mesinha ao lado. Aquela hora...
- Sim?
- Estou?
- Então? Não me digas que estás com medo da trovoada?
- Ahhhhhhh... um bocadinho, sim.
Sorri. Já estava a espera do telefonema dela, porque em noites de trovoada sei que tinha sempre de pedir protecção.
- Acordei-te?
- Não. Estava para aqui a escrever, sem sono.
- Já conheço essas noitadas. Pelo menos não foste sair com outra, pelos vistos.
- Olha que tola! Na verdade, fui.
- Foste?!
- Claro. Levei a tua cadela à rua, passear.
- Com essa estás a vontade!
E rimos os dois. Mas o tom de voz dela mudou repentinamente.
- Há uma coisa que vou ter de fazer...
- Uma coisa?
- Sim...
- Então?
- Não te preocupes, tudo vai ficar bem.
- Sabes que gosto que confies em mim...
- Então confia apenas que vai ficar tudo bem.
- Okay, está bem.
Silêncio.... Teria desligado?
- Tenho saudades...
- Saudades?
- Tuas! Nossas.
- Mas só foste hoje aí, eu prometo-te que amanhã estamos juntos outra vez.
- Sim... tenho de desligar. Um beijo enorme.
- Um beijo para ti também.
Desligou.
Preocupava-me aquela conversa, aquelas hesitações... Bem amanhã de certeza que poderia tirar tudo a limpo, e perceber o que se passava com ela...
Acordei. Tinha dormido pouco, com um pressentimento estranho. Tentei ligar-lhe e não atendeu. Poderia estar a dormir ainda... então deixei mensagem.
A viagem de carro foi rápida, procurei andar depressa. Alguma coisa se passava! A viagem de meia hora transformou-se me 15 minutos, visto que não havia trânsito aquela hora da manhã. Parei o carro, e não encontrei o da rapariga dos cabelos castanhos... Talvez estivesse na garagem.
Tentei tocar à campainha e dei com uma chave da parte de dentro da campainha, numa portinha pequena onde era possível aceder ao funcionamento da mesma. A chave abriu a porta.
E então entrei...
Não havia sinais dela. Talvez nem tivesse dormido ali, ou pelo menos partira cedo. O que se passava?
O telemóvel estava ocupado e as mensagens não foram entregues...
- Um bilhete!
Estava ali em cima da mesinha de cabeceira do antigo quarto dos pais.
"Ninguém pode entender as razões que me levaram a fazer isto. Não penses que és o culpado, apesar de saber que te culpas e de te sentires destroçado neste momento. Tenta ganhar algum alento, tu mereces ser feliz. Um dia vais perceber o porquê de tudo isto. Eu poderia ter esperado por ti para me despedir, mas não conseguiria fazer sem chorar e sem pensar em querer ficar, porque não posso. Vais ter notícias minhas em breve, tenho a certeza. Enquanto isso cuida dos pequenos, tenho a certeza que a tua mãe te ajudará, ela é uma grande senhora. Não te peço que te prendas, se quiseres encontrar outra pessoa, mereces isso. Se há alguém que sonho na eternidade é ao teu lado.
Contigo. Um beijo.
Para sempre,
Rapariga dos Cabelos Castanhos, como carinhosamente me chamas"
E mais tarde percebi tudo isto. Poucas horas depois recebi um telefonema. Ela tinha sido encontrada sem vida, com uma overdose brutal de Barbitúricos, como um passarinho. Não foram nada fáceis estes dias, mas depois da autópsia percebi o porquê: a operação de remoção do tumor não tinha sido eficaz e criaram-se e espalharam-se metastases, e ela fingiu estar tudo bem por muito tempo, faltando aos tratamentos percebendo que já não era possível salvar-se. Não quis que assistíssemos à sua degradação, e optara por aquele caminho. Tinha de respeitá-la...
E agora recordo apenas alguns episódios que se passaram felizes ou mais tristes, mas que fizeram da minha vida melhor. Porque eu quis recordá-la como uma heroína.
Em algum lugar ela estará...
Em algum lugar ela estará...
"Morrer é apenas não ser visto. Morrer é a curva da estrada." (Fernando Pessoa)