sexta-feira, abril 05, 2013
Crónicas da Rapariga dos Cabelos Castanhos: O Sumo da Eternidade
Everlong.
Fins de Julho, uma noite muito quente, quase insuportável, onde dominava no ar o cheiro intenso a fumo e sobre o céu um clarão enorme era visto a muitos kms de distância. Mais uma vez os fogos atacavam o país, um fenómeno repetido, verão após verão.
Passavam vinte minutos das três da manhã e a rapariga dos cabelos castanhos não estava já na cama, embora eu não a tivesse sentido levantar-se. É então que ouço um soluçar da varanda junto com um choro miudinho que entra pela porta entreaberta para poder circular algum ar naquela noite quente. Paciente, não quis interromper. Não queria que ela soubesse que aquele choro também podia ser meu, e então deixei-a.
- Estás acordado? - perguntou-me dirigindo-se para a cama.
- Sim, estou.
Abraçou-se com força e rolou lágrimas sobre a cama. Estava de novo a meditar no passado, a ler os velhos textos que escreveu na sua vida e a tentar reconfortar a alma. Era outra vez a perda, a nossa perda...
Deixei-a soltar tudo, falar e gritar o que pode. A morte é uma convivência difícil, mas também a rapariga dos cabelos castanhos tinha passado por muito mais que isso e eu sabia como se aguentava perante os outros e onde chorava nestes momentos.
- Hey, princesa.
O choro tinha acalmado.
- Diz.
- Alguma vez comeste uma salada de frutas?
Estranhou.
- Sim, comi. Mas porquê?
- Bem...
"Primeiro, olhas para a salada, para a taça. É de vidro, é quebrável se não tomarmos alguma atenção, embora não digo que ela se parta logo da primeira vez que cair. Há pessoas que tentam comprar taças mais resistentes, mas sabemos bem que elas podem partir primeiro do que uma simples taça barata. Depois vais preencher com duas grandes coisas: a fruta e o sumo. A fruta são as coisas mais importantes: pessoas e bens. O sumo preenche o que falta: são as pequenas coisas. De que vale ter muito sumo se depois não temos espaço para a fruta? Nada. Depois, acabamos por ter frutas melhores que outras, podemos mesmo apanhar fruta podre, ou pisada. Algumas vão mesmo acabar por sair rápido, e normalmente comes primeiro as que menos gostas, porque queres ficar com o sabor das ultimas no paladar. É por isso que algumas nunca vão sair do teu gosto, mesmo que desapareçam. Mas há algumas que vão ficar dentro da taça, não que não gostes delas ou por alguma razão parecida, mas sim porque não queres que desapareçam e essas nunca vão sair porque tu já conheces o seu gosto de cor. E por último, não te esqueças de por açúcar, porque uma vida com mais ou menos és tu que controlas, mesmo que a fruta seja má ou não tenhas dinheiro para uma taça melhor, o açúcar é a mínima parte que controlas e isso vai influenciar especialmente o sumo, as pequenas coisas. E mesmo que tudo isto seja mau, ou não estejas feliz, vais ver que haverá mais sabores a descobrir e que vais acabar por levar um sorriso para a rua, mesmo quando tudo parece mau. Porque mesmo que tudo desapareça vai ficar sempre o gosto das coisas. E serás feliz".
Mas o sono parecia que não vinha... porque muitas vezes é mais fácil fazer alguém acreditar nas palavras que nós próprios. Mas há sempre um sorriso nos lábios por aí.
E a rapariga dos cabelos castanhos adormeceu, sem soluços e com o pensamento limpo, tranquila, como a menina pequena que conheci. E eu sorri, porque pacientemente iria ganhar uma guerra secreta.
E o clarão tinha sido dissolvido na noite, estava o incêndio apagado.
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