domingo, julho 22, 2012

Portela

Desce mais um avião no calar da noite sobre as suas grandes asas e as suas enormes luzes. O avião é um fragmento de memória aérea, um resto de esperança na aproximação dos países, como que um passaporte, um abrir fronteiras...
São 3 horas da madrugada e espero, ou melhor, desespero. O avião vindo de Milão está atrasado 2 horas e eu estou impaciente, olhando para as horas que marcam nos ecrãs luminosos entre os voos que estão a sair e os que chegam. O que vou dizer? O que posso esperar?
Olho em volta os passageiros no terminal: pessoas dos mais variados tipos, desde rastafaris, punks, senhoras do mais alto quilate (apenas pelos seus diamantes), chiques e de alto requinte com chapéuzinho ao alto, mas também pessoas engravatadas e casais com aspecto de turistas.
O voo 927 da AirItalia estava a poucos minutos de distância e eu ainda não sabia o que dizer, como reagir ao enorme vulcão em erupção que era ela. Tinha saído há já 5 horas de casa e metido na A1 para poder recebe-la e a espera era ainda maior...
Distraído como estava não reparei que indicavam a aterragem de um pequeno voo de Frankfurt indicando como primeira origem um dos aeroportos milaneses. A revista que folheava parecia interessante falando de descobertas cientificas nas áreas da medicina.
Foi aí que... a rapariga dos cabelos castanhos apareceu diante dos meus olhos.
- Então não me vais cumprimentar?
Estava ainda meio atordoado com aquela chegada repentina, de modo que me levantei e dirigi dois beijos no rosto.
- Como é que estás?
- Bem...
Mais uma vez ela respondia com o tom de mistério, o tom de que as coisas não estão bem, e eu sofro cá por dentro tentando perceber o que se passa. Sabia que estava magoada comigo, mas mais que magoada era um orgulho que escondia, uma teimosia. E saber que podiamos ser tão felizes se deixassemos esse orgulho de parte e nos quisessemos um ao outro...
- Sabes que...
- Daniel, agora não. Estamos cansados. Leva-me a casa.
- Sim, eu levo...
As vezes tinha esta tendência, tentando demonstrar a disponibilidade e a atenção que lhe dava... doía tanto não a poder abraçar e ter como quísesse. As coisas deveriam ser abertas, sem medos de assumir que gostavamos um do outro. Mas o meu receio a esta última frase remete-se às ultimas quatro palavras... será que gostamos?
O trânsito na A1 era reduzido, e a estrada estava livre. Chegado à Mealhada cortámos e saímos em direcção a casa. No entanto ...
- Podes cortar aí?
- Aqui?
- Sim. Leva-me à Cruz Alta.
O carro subiu a Serra do Buçaco num ápice, conhecendo cada recanto e cada curva, levando ao limite toda a potência. Estava no cimo da serra, no ponto mais alto, na cruz que orientava a nobre vila do Luso e o concelho da Mealhada. Tão perto do céu...
- Sabes...
- Daniel, desculpa. Eu às vezes digo coisas sem pensar e precipitei-me... sinto que podemos ser felizes, mas o meu medo, o meu passado falou mais alto. Tenho medo que não sejas o mesmo, que já não me dês atenção.
Tinha medo então, medo.
Eu dei-lhe a mão, e desmanchei a trança que trazia no cabelo. Contemplava agora a sua beleza natural, e o vulcão estava agora a derramar lava como nunca, libertando o peso daquele ser humano que eu ainda considerava extraordinário.
E aí disse-lhe tudo. Que precisava de ser mais frio para ela perceber, que precisava de assumir, de não ter medos, de estarmos juntos, de conquistar cada etapa.
- Eu estou aqui. Confia em mim.
- Tenho medo.
- Podemos ser felizes.
- Como nos livros?
- Sem fantasias. Sem floreados. Felizes.
E assim abracei a rapariga dos cabelos castanhos, contemplando o mundo, esse mundo que tinha outra vez nas mãos...

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