Desce mais um avião no calar da noite sobre as suas grandes asas e as suas enormes luzes. O avião é um fragmento de memória aérea, um resto de esperança na aproximação dos países, como que um passaporte, um abrir fronteiras...
São 3 horas da madrugada e espero, ou melhor, desespero. O avião vindo de Milão está atrasado 2 horas e eu estou impaciente, olhando para as horas que marcam nos ecrãs luminosos entre os voos que estão a sair e os que chegam. O que vou dizer? O que posso esperar?
Olho em volta os passageiros no terminal: pessoas dos mais variados tipos, desde rastafaris, punks, senhoras do mais alto quilate (apenas pelos seus diamantes), chiques e de alto requinte com chapéuzinho ao alto, mas também pessoas engravatadas e casais com aspecto de turistas.
O voo 927 da AirItalia estava a poucos minutos de distância e eu ainda não sabia o que dizer, como reagir ao enorme vulcão em erupção que era ela. Tinha saído há já 5 horas de casa e metido na A1 para poder recebe-la e a espera era ainda maior...
Distraído como estava não reparei que indicavam a aterragem de um pequeno voo de Frankfurt indicando como primeira origem um dos aeroportos milaneses. A revista que folheava parecia interessante falando de descobertas cientificas nas áreas da medicina.
Foi aí que... a rapariga dos cabelos castanhos apareceu diante dos meus olhos.
- Então não me vais cumprimentar?
Estava ainda meio atordoado com aquela chegada repentina, de modo que me levantei e dirigi dois beijos no rosto.
- Como é que estás?
- Bem...
Mais uma vez ela respondia com o tom de mistério, o tom de que as coisas não estão bem, e eu sofro cá por dentro tentando perceber o que se passa. Sabia que estava magoada comigo, mas mais que magoada era um orgulho que escondia, uma teimosia. E saber que podiamos ser tão felizes se deixassemos esse orgulho de parte e nos quisessemos um ao outro...
- Sabes que...
- Daniel, agora não. Estamos cansados. Leva-me a casa.
- Sim, eu levo...
As vezes tinha esta tendência, tentando demonstrar a disponibilidade e a atenção que lhe dava... doía tanto não a poder abraçar e ter como quísesse. As coisas deveriam ser abertas, sem medos de assumir que gostavamos um do outro. Mas o meu receio a esta última frase remete-se às ultimas quatro palavras... será que gostamos?
O trânsito na A1 era reduzido, e a estrada estava livre. Chegado à Mealhada cortámos e saímos em direcção a casa. No entanto ...
- Podes cortar aí?
- Aqui?
- Sim. Leva-me à Cruz Alta.
O carro subiu a Serra do Buçaco num ápice, conhecendo cada recanto e cada curva, levando ao limite toda a potência. Estava no cimo da serra, no ponto mais alto, na cruz que orientava a nobre vila do Luso e o concelho da Mealhada. Tão perto do céu...
- Sabes...
- Daniel, desculpa. Eu às vezes digo coisas sem pensar e precipitei-me... sinto que podemos ser felizes, mas o meu medo, o meu passado falou mais alto. Tenho medo que não sejas o mesmo, que já não me dês atenção.
Tinha medo então, medo.
Eu dei-lhe a mão, e desmanchei a trança que trazia no cabelo. Contemplava agora a sua beleza natural, e o vulcão estava agora a derramar lava como nunca, libertando o peso daquele ser humano que eu ainda considerava extraordinário.
E aí disse-lhe tudo. Que precisava de ser mais frio para ela perceber, que precisava de assumir, de não ter medos, de estarmos juntos, de conquistar cada etapa.
- Eu estou aqui. Confia em mim.
- Tenho medo.
- Podemos ser felizes.
- Como nos livros?
- Sem fantasias. Sem floreados. Felizes.
E assim abracei a rapariga dos cabelos castanhos, contemplando o mundo, esse mundo que tinha outra vez nas mãos...
domingo, julho 22, 2012
segunda-feira, julho 16, 2012
Rain Dance
Olhei para o céu hoje à noite e vi um lua grande e redonda, uma pérola perfeita nesse mar que é o céu. Ao redor da lua percorrendo todo o céu vi, lanternas em torno de barcos navegantes, a que os homens chamam estrelas. Algumas caiem durante a noite, como naufragos no mar e desaparecem, talvez por se dedicarem à pesca submarina.
Mas as estrelas que teimam em bailar nos seus olhos são outras, estrelas que nada têm de luz, nada têm de brilhante. Elas bailam e acabam por cair como essas estrelas cadentes, submissas a um destino. O destino, esse, é o pano cinzento, composto de prismas quadrangulares que chamamos chão. Derrama-se o rio sobre as rochas mais pequenas, queixa-se o mar das estrelas que cairam. Na nascente orbitam, no chão de mármore, esferas de basalto e velhos pedaços de madeira, com folhas de plátano. No canto da nascente existem pequenas esferas que saem do plátano, cor torrada que deixam comixão na pele. Debaixo da nascente há plataformas que provocam um efeito de cascata, como que uma "cachoeira", onde se acumulam noites de luar, rios escondidos e pequenos caudais de água.
As noites estão maiores e a lua apenas soluça no seu movimento. O calor faz as estrelas encadearem sobre a superficie do mar e aterram algumas como naves espaciais, desfeitas pelo calor térmico da atmosfera. Nas nuvens, o racional contar das correntes marítimas, do ascender do ar quente e do controlo dos aguaceiros, discerne-se uma questão: o que provoca essa chuva incadescente de estrelas no meio da noite? Há algo no meio do mar remoto que nos indique a possibilidade de essas estrelas apenas nos iluminarem e apontarem um caminho?
O mar, revoltado e inconstante, não nos responde. Ele guarda o segredo do ser, aquilo que irracionalmente a atmosfera cria: a imprevisibilidade constante, o efeito borboleta das consequências pequenas se transformarem em catástrofes. Um novo Titanic, um novo iceberg, um navio sem fundo, o soltar das tábuas de uma arca de Nóe: o dilúvio.
Estudamos tudo dele. Condições do vento, tantas e tantas ondulações, pequenos remoínhos, mas esses estudos são inconclusivos como quem estuda uma esfera grande e não a pode conhecer por dentro, como que um núcleo maciço e rochoso se tratasse. Os geólogos apenas descrevem os fenómenos, e as placas tectónicas movem-se no fundo do mar. Fluído ou rochoso? Todos eles passam pelos dois estádios, mas destinguem-se consoante o tempo que passam em cada um.
É por isso que os oceanos não têm propriamente fronteiras, as camadas da terra distinguem-se por descontinuidades, sendo incerto cada ciência que estudamos, cada passo que damos.
O mar hoje está mais calmo... as estrelas brilham, e nada parece prever a catástrofe, mas nunca se sabe quando Neptuno resolve mexer no seu tridente e, no alto mar as correntes movem-se, os ventos sopram com força e de novo bailam as estrelas sobre a lua...
E aí, a rapariga dos cabelos castanhos fecha a porta, apaga a luz do quarto e deixa cair as estrelas sobre o chão.
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