quinta-feira, setembro 04, 2014

Maré Alta


Um dia eu vou deixar de contar os passos, de apagar a luz, de acabar o trabalho que deixei sobre a secretária acumulado por vários dias. Um dia eu vou deixar de ser adulto, ou vou deixar de ser criança, ou talvez não deixe de ser coisa nenhuma.
Já te falei de histórias, de rouquidão, de choros e de gritos. Já me contaste os sorrisos, lembraste os rostos acenaste-me as caras lavadas e as mãos esfoladas, os dias cinzentos e as noites que contavas estrelas que passavam lá longe no horizonte, intermitentes e repetentes de coisas, de gostos.
Às vezes a noite vem depressa de mais, às vezes o coração bate depressa de mais, às vezes acontece tudo depressa de mais. Mas por acontecer não significa que está errado. Significa que era isto que buscávamos incessantemente, ao luar com dois copos de vinho verde na mão, o teu cigarro na ponta da boca e um cheiro a creme hidratante nos rostos avermelhados do longo dia de praia.
O cansaço dos dias apagava-se por ali, de quem anda a correr incessantemente atrás de pessoas que não sabem a cor das estrelas nem o sopro do mar. Pessoas escuras e ocas, sem o mínimo cuidado de conhecer o castanho profundo do teu cabelo, ou a tua cor morena da pele. Pessoas que não sabem mais do que contar notas de 20, ou de seja lá o que for. Pessoas que não conhecem o cheiro do mar, ou o cheiro daquele teu champô de tampa preta que passas cuidadosamente no cabelo.
Às vezes preferia desfrutar do asfalto, ou de uma calçada, enquanto passeávamos na praça. Mas o que desfrutava mais era de olhar para o teu rosto. Fixava-o tanto que nem as palavras chegavam para dizer o quanto o queria por perto. E por vezes nem palavras tinha para ti, por vezes nem sinais tinha para ti.
Os meus medos contigo sempre foram o passado. O meu e o teu passado. O passado em que fomos felizes, mas principalmente o que fomos tratados como indiferentes, por rostos fechados, distantes e escondidos, instantes e desaparecidos. O meu medo é ser pequeno de mais. O meu medo é querer demasiado, o meu medo é deixar-te ir. O meu medo é ser eu. Porque eu sou os meus medos.

E todos os dias, a maré subia e descia naquela praia, como que afagando as suas gotas de água em rochas escarpadas e em areias subtis. E o cheiro a maresia era inconfundível.
Adormeceste sobre a areia, e o teu biquini as riscas confundia-se com os guarda-sóis que repousavam sobre a praia. De novo fiz questão de te afagar a cara, de olhar as tuas linhas, o teu rosto.
E saberia sempre que ao fim do dia, por mais horas que o sol tivesse dado luz aquele mar, por mais vento que tivesse soprado no teu rosto, por mais areia que tivesse entrado nos teus sapatos, eu saberia sempre que haveria uma lua e umas estrelas para nós, um banco e um sorriso para os dois, dois pratos e um jantar partilhado, uma cama quentinha e o teu rosto, o teu bonito rosto para um novo dia, uma nova manhã, um novo acordar, uma nova realidade que seria enfim nossa.
E aí estava eu. Eu sem os meus medos. E ai estavas tu. Tu sem os teus medos.
E aprendemos a escrever uma nova palavra com 4 letras, com as mesmas do teu nome, e tão simples como tu, como nós. Aprendemos a dizê-la e a usá-la. Aprendemos a ser felizes.
Porque mesmo encobertos por esses medos, o luar está sempre lá, sempre disponível para nos olhar outra vez e nos dar a luz que precisamos.